Como são as rotinas de quem está em privação de liberdade? Trabalhar, estudar, participar em projetos, são tarefas intercaladas por telefonemas com os minutos contados, que nunca chegam para matar as saudades de casa, da família, dos mais queridos. No Estabelecimento Prisional de Caxias os dias passam, trata-se da vida e encontram-se mecanismos de superação, dentro de um circuito entrópico, onde quem está preso parece ser quem menos importa.
Encontramo-nos no espaço do ginásio, essencial, para manter alguma sanidade física e mental e um espaço alternativo ao espaço exíguo das celas, quase sempre sobrelotadas. Uma cela está dividida por zonas: despensa, onde se guardam comida e pertences, beliches, normalmente para quatro pessoas, um espaço com uma mesa e uma cadeira e ainda uma zona de casa-de-banho. Como se negoceia este espaço? Quem declara que é hora de conversar, ler, comer, dormir, fumar?
No espaço da barbearia do Estabelecimento Prisional de Caxias corta-se o cabelo, faz-se a barba e põe-se a conversa em dia. Quantos anos levaste? Quando esperas sair? Já tens os documentos em dia? Seria expectável que a reinserção social da pessoa privada de liberdade começasse a ser preparada ainda dentro do estabelecimento prisional, mas por entre problemas administrativos kafkianos à sobrevivência do dia-a-dia, o espaço para cada um imaginar e preparar um futuro melhor parece inexistente.
Este episódio revela-nos uma outra prisão, a psicológica, e como as pessoas privadas de liberdade encontram formas de superar os sentimentos de culpa, os traumas, a dor, os medos e as violências a que foram e estão sujeitos. Como é que o tempo passado no estabelecimento prisional pode contribuir para transformar estas vulnerabilidades, como se transforma humilhação e castigo em humildade e consciência de si?
A entrada num estabelecimento prisional implica a aprendizagem de novas relações alicerçadas em múltiplas hierarquias e num sistema desumano de opressão e violência. O manco, ou seja, a cela do castigo, é considerado um lugar que destrói um homem. O que acontece dentro de um estabelecimento prisional deixa cicatrizes e traumas, que muitas vezes não são processados porque o foco é sobreviver. Alguém disse, «o arquivo morto não se consulta».
O contato com os familiares é vital para a manutenção dos laços afetivos e sociais de quem está privado de liberdade. Quem tem direito a visitas e quem tem quem o venha visitar, aguarda esse momento com esperança e ansiedade. Na sala, por entre o vidro de separação, trocam-se quotidianos, perspectivam-se futuros, recordam-se passados, mas as palavras não chegam para o que os olhares, os risos e a expressão corporal trocam entre si.
Quem tem os familiares presos também vive uma espécie de prisão, seja através da angústia, medo, ansiedade que sente, seja pelo preconceito que a sociedade revela, oprimindo e condenando os familiares das pessoas privadas de liberdade. Vive-se com o peso do estigma e em medo permanente. Uma carga difícil de explicar a crianças com pais presos, que acabam por crescer, enredadas em estratégias e subterfúgios, que só reforçam uma desumanização estrutural.
Neste episódio, acompanhamos Pablo, que está a terminar a pena em casa, com pulseira eletrónica. Ao mesmo tempo que recebe o apoio da família, dos vizinhos e dos amigos, Pablo reflete sobre esses tempos e sobre as implicações existenciais do que viveu. As dinâmicas experienciadas no estabelecimento prisional assentam em princípios opostos a qualquer plano de reinserção social.
Que tipo de acompanhamento têm as pessoas que saem de um estabelecimento prisional? Muitas vezes, saem do próprio edifício sem dinheiro para apanhar um transporte público, sem um local para dormir, ou seja, saem sem qualquer apoio ou plano de reinserção. As entidades públicas que deveriam prestar este tipo de apoio revelam uma incapacidade em dar respostas. O resultado é, muitas vezes, o regresso ao estabelecimento prisional.
Ter estado preso e ter estado numa prisão é acrescido do estigma assente em preconceitos sociais. A pessoa é tida como marginal e torna-se difícil integrar-se deparando-se, com dificuldades em arranjar trabalho devido ao seu cadastro, ou dificuldades em obter apoio psicológico, para si e para os seus familiares, mas são os próprios técnicos de reinserção social que replicam discursos, que por sua vez replicam o estigma e o preconceito da própria sociedade. Um ciclo difícil de quebrar.
O fim da pena aproxima-se e a ansiedade aumenta. Sonha-se com o mar, com a praia, com abraços, com a comida da mãe ou da avó. Recomeçar implica sempre preparar-se psicologicamente para as emoções que se avizinham. Há urgência em recuperar o tempo perdido, em estar presente, em recuperar conversas. Sair para o espaço aberto, regressar à vida, pode ser paralisante, e a memória da prisão não desaparece de um dia para o outro.
Cá fora, a vida não está fácil, melhor levar um dia de cada vez. Reencontrar a família, amigos, vizinhos, regressar a casa, pôr a conversa em dia... «É muita força de vontade que se tem de ter!». Há documentos para atualizar, é preciso encontrar trabalho, reconstruir as afetividades e recuperar o tempo perdido. Parece que a reinserção social é feita exclusivamente pela própria pessoa. Porquê?